“Esta vida é uma
estranha hospedaria,
De onde se parte
quase sempre às tontas,
Pois nunca as nossas malas estão prontas,
E a nossa conta nunca está em dia.”
Pois nunca as nossas malas estão prontas,
E a nossa conta nunca está em dia.”
Mario Quintana
Ana Paula
Padilha
10-08-2011. Fazia um dia quente e lindo de fim de
inverno. Os altos edifícios cor de chumbo contrastavam com o céu imenso e azul,
visitado por poucas e branquinhas nuvens. Um ventinho agradável e despreocupado
batia nas copas das árvores, mas ao contrário da calmaria do vento, Carol
Rocha, uma ex-estudante de psicologia atrasada para chegar à agência, onde
agora era publicitária, estava correndo contra o tempo.
Cruzando a Ipiranga e a avenida São João e nem mesmo o sinal vermelho para
pedestres a impediu. Oh, meu Deus, de
onde surgiu este ônibus? Socorro, minhas entranhas estão saindo pela boca, não
posso falar, por favor, o que está acontecendo? Socorro. Gritou internamente. Estou me
lembrando, eu atravessei a rua correndo, ai minha cabeça! Alguém tire este
ônibus de cima de mim, não consigo mexer minhas pernas, será que vou viver? Por
favor, Deus, me deixe viver, me deixe continuar andando, por favor..
De repente,
parece que todas as pessoas que passavam pelo local na mesma velocidade que
Carol andava para chegar ao trabalho, perderam toda a preocupação e começaram a
se amontoar ao redor da cena. Carol estava estirada no chão, molhada pelo
próprio vômito, ocorrido no momento em que o ônibus a atingiu e, embora
estivesse presa pelo quadril entre o imenso veículo e o asfalto, permanecia com
os olhos abertos e podia ouvir cada cochicho. Ainda estou viva? Tudo parece um sonho,
surreal, um sonho. Algumas
pessoas tentaram ajudar, e uma amiga surgiu. De quem são esses pés? Oh, é a Mi, ela está
pegando minha bolsa. Isso mesmo, cuide das minhas coisas.
- Moça, aguente
firme, o socorro já está chegando! – um mototaxista tentava acalmar a moça
acidentada. Ela apenas o olhava perdida no espaço. Os bombeiros chegaram e levaram Carol para o hospital
público mais próximo. A
vida é mesmo muito frágil, uma bobagem uma irrelevância. Lembrou da música.
Pi.Pi.Pi.Pi.Pi. Carol acordou assustada ao som de
um ritmado eletrocardiográfico ao
seu lado e de mais cinco pacientes em fase terminal. Estava na UTI do hospital
com um braço esquerdo e tornozelo quebrados, um dos joelhos deslocados, uma
lesão na bexiga e fraturas comprometedoras no quadril. E ainda assim, estou viva e sem nenhum arranhão no rosto, isso é um milagre!
- Bom dia!
– exclamou a doce enfermeira.
- Bom dia!
– Carol sussurrou de volta.
- Você é
uma menina de sorte! – falou a enfermeira. Ela tinha grandes olhos azuis, um
rosto doce, um pouco amarelado, assim como baunilha. Nessas roupas brancas, parece um anjo. – Carol, seu rosto está
impecável, acho que Deus não deixou retocarem a obra dele, você teve muita
sorte – continuou.
- Eu estive
três metros abaixo do céu! – respondeu Carol, com os olhos marejados.
Carol tinha
um rosto levemente ovalado. Seus olhos e cabelos castanhos não a diferiam muito
de outras garotas da sua idade. 23 anos. Quando sorria, era possível ver o
brilho do aparelho que escondia seus dentes ainda intactos, apesar do acidente.
Já estava no segundo dia, ainda imóvel e dormindo apenas duas horas por dia,
porque os aparelhos agora pareciam uma escola de samba invadindo o silêncio
comunal da sala. Toc, toc, toc! A porta abriu vagarosamente. Fábio, nossa, achei que nunca mais fosse
vê-lo, obrigada, Deus, porque estou viva e posso ver o amor da minha vida, aqui
na minha frente.
- Oi,
amor! Estive tão preocupado. Só posso ficar durante 15 minutos, mas trouxe um
iPod para você. Quando o jovem alto e com a barba por fazer lançou seu último
olhar e saiu fechando a porta pelos calcanhares, Carol deu play no iPod. Eu
acho que sempre vou chorar quando ouvir essa música, ele é mesmo o homem da
minha vida.
Everywhere
I’m looking now
(Em todos
os lugares que estou olhando agora)
I’m
surrounded by your embrace
(Você me
cerca com o seu abraço)
Baby I can
see your halo
(Amor,
posso ver sua auréola)
You know
you’re my saving grace
(Você
sabe que é a minha graça salvadora)
You’re
everything I need and more
Você é
tudo que preciso e mais)
It’s
written all over your face
(Isso
está escrito em todo o teu rosto)
Baby I
can feel your halo
(Amor,
posso sentir a sua auréola)
Pray it
won’t fade away
(Rezo
para que ela não desapareça)
Faltavam ainda duas cirurgias. Uma no tornozelo e
outra no quadril, onde a pancada foi feia e por causa dessa lesão, a doce Carol
quase havia perdido o dom de respirar por conta da hemorragia desenfreada que
escorria dentro de si. Quatro dias depois de dar entrada na UTI, a Carol, com
as costas cheias de bolhinhas, quase impossibilitada de se mexer e com a pele
extremamente sensível, foi transferida para o quarto 508 do Hospital Público de
São Paulo.
- Tchulim!!!!!!! - As alegres vozes que exclamaram
o apelido de Carol eram do grupo de amigos que acompanham a moça todos os dias
pelas postagens diárias que ela relatava em seu blog, na internet.
- Oi, gente! - Balbuciou já com lágrimas nos olhos.
Sofri um bocado, mas hoje me sinto a pessoa mais amada do mundo. - Vocês
são foda! - Respondeu resumindo seus melhores sentimentos.
PiPiPi, junto com a Beyoncé, o eletrocardiográfico já havia se tornado
quase a trilha sonora de sua vida. Os olhos se abriram tão devagar como
dois amantes que adiam a despedida. A luz entrou tão rapidamente como um raio
que corta a escuridão do céu tempestuoso. Embora estivesse fraca, quebrada e
debilitada, possuía uma força inexplicavelmente imensa. Havia acordado cinco
horas depois do fim de sua última cirurgia. Foram contabilizadas dez bolsas de
sangue injetadas em suas veias. Quantas pessoas precisaram doar um pouco de
suas próprias vidas para que eu pudesse estar aqui, vivendo também. O sangue de
quantas pessoas está correndo nas minhas veias? Eu não sei, mas certamente o
vermelho do amor chegou ao meu coração e me marcou tão profundamente, que nunca
vou esquecer o quanto o ser humano precisa do próximo.